A relação saúde-doença está intrinsecamente ligada à percepção subjetiva dos sujeitos, à forma como grupos nomeiam, definem, interpretam e tomam decisões em relação aos aspectos da realidade. A noção do que é “normal” e patológico desencadeia-se neste sistema de representações simbólicas dentro do processo saúde-doença.

O texto Cortiços (1996) através do conceito de higienização social constata que as classes pobres foram categorizadas como nocivas à sociedade, a partir do relato da interdição pela Inspetoria Geral de Higiene, do cortiço carioca “Cabeça de Porco”, em 1893. O termo “classes pobres” e “classes perigosas” são noções de uma mesma realidade, desde metade do século XIX.

Segundo Chalhoub (1996), a proliferação dos cortiços no Rio de Janeiro - iniciada a partir de 1850 em decorrência do aumento dos imigrantes e do aumento do número de escravos alforriados - já possuía um estigma de marginalidade e de perigo de contágios, expostos que estavam - segundo o imaginário das elites - aos riscos devido à promiscuidade, à ociosidade e aos hábitos “inadequados” dos moradores dos cortiços.

O surgimento da ideologia da higiene perpassa por essa noção de higienização dos pobres, vista a alta taxa de mortalidade e das precárias condições de higiene a que estavam expostos. Na tentativa de controle social e de tentar conter a ameaça de epidemias da cidade, os cortiços passaram a ser o alvo de uma série de contenções. Não obedecendo tais ordens, os moradores do Cabeça de Porco foram intimados ao despejo, ao que sucedeu a demolição das casinhas com aproximadamente 2 mil pessoas.

No século XVIII, na França especialmente, o aumento populacional fez com que aumentasse o medo das ruas, surgindo o pânico das epidemias urbanas. Aliado ao conflito de classes, surge a necessidade de um mecanismo de controle das doenças, permanência em suas casas e vigilância exercida pela polícia médica.

O esquema da quarentena e do modelo médico foi apresentado por Foucault de 2 formas: o primeiro é o religioso, com a ideia de purificação da cidade, como foi o caso da lepra na Idade Média e o tipo militar, da exclusão dos “malfeitores” e “loucos” que seguiam o mesmo modelo excludente do primeiro.

Para Foucault (1982), a higiene pública advém das práticas excludentes desde os séculos XVI e XVII e o modelo de quarentena tem na medicina urbana a sua continuidade. É a partir do século XVIII que os cemitérios são transferidos para a periferia das cidades, pois há uma maior preocupação com a circulação da água e do ar como transmissores de doenças, gerando grande inquietude da população burguesa que reivindicava junto às autoridades um plano emergencial em relação às “classes perigosas”.

Foucault também levanta a questão das práticas reguladoras do estado moderno vinculado à política e à economia. A forma de atuação do poder para este autor apóia-se nos procedimentos de distribuição espacial, no controle das ações e atividades humanas, através da normalização.

Goffman (1988), conceitua estigma:

Acreditamos que quem possui um estigma, é quase um não-humano, dessa forma, discriminado (…) construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa.

Foucault nos mostra que práticas excludentes para com os estigmatizados tomaram forma com o controle do corpo em favor da manutenção de um bem público com a medicina urbana no século XVIII e, posteriormente com a medicina científica que deve muito a anterior, por suas observações minuciosas.

Os pobres considerados inofensivos num primeiro momento, passam para a condição de nocivos – principalmente com o aumento das doenças, como a cólera em 1832 –, sendo alvos do controle estatal, que exercia a vigilância das casas e o controle do corpo.

Doentes considerados nocivos à mercê de um destino desconhecido, podiam escolher entre a esperança de uma possível cura ou uma possível morte por esconder a doença e por não sujeitarem-se ao autoritarismo médico-estatal que já os havia colocado numa situação estigmatizadora.

Que são fenômenos sociais, isto não há como negar, no entanto as contradições sobre como definir e o que pode determinar ou não a saúde ou a falta dela (doença?), desde o século XIX com as vagas explicações sobre as doenças advindas da contaminação da água, do solo e dos alimentos, determinaram naquela época, ações de caráter político de intervenção, e que, como já visto, levaram às práticas de ações coercitivas contra os indivíduos em favor de um “bem-comum”.

As discussões sobre o que é ser saudável, e o que é ser “normal” e patológico são de interesse das ciências sociais. Não há como tratar os processos de saúde-doença, sem contextualizar e levar em consideração a cultura, as ideologias, símbolos e representações de uma determinada sociedade. Das possibilidades de acesso à saúde pública, do nível macro dos ecossistemas, das descobertas tecnológicas, do modo como o universo se organiza e se modifica.

O controle estatal já tomou forma, designando a partir de agora quem tem ou não o direito de ficar em suas casas, de ter seus empregos, sua vida de volta. Em caso de tragédias, a solidariedade e a força coexistem, exércitos tomam conta das normas do lugar e dos corpos das pessoas. E, da solidariedade, sobrevivemos.

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