Estava pensando esses dias sobre (meu) corpo. Ele é meu, porque me pertence, invisto nele, pra mais ou pra menos, dependendo das circunstâncias, da situação, da minha animação. Seja como for é com e por ele que me movimento e sinto todas as sensações que me são possíveis no mundo. É onde moro, a capa da minha essência, a minha melhor propaganda, o motivo pelo qual me relaciono com um outro que não eu, através da cognição, do desejo, do toque. É o limite entre “eu” e o “outro”, a fronteira com o mundo.

Atravessado por uma série histórica de marcas geracionais, homens e mulheres que cunharam características fenotípicas, mas não só, sua luta, suas dores e amores, estão em mim também, influenciando traumas, habilidades, comportamentos, gostos. Minha mãe, meu pai, meus avós, meus bisavós personificaram a luta incessante do seu lugar no mundo. Cabe a mim dar continuidade a esta luta, mais ainda por pertencer a um corpo feminino, tal qual todas as mulheres de minha família, carregado de simbolismos e representações patriarcais, poço de sofrimento e de dor, de vontade e de amor, de sonhos e esquecimentos, cada uma a seu modo, a seu tempo, do seu jeito.

Meu corpo agora carrega um outro corpo, àquela pra quem iremos designar a saga das mulheres e homens da minha linha geracional e da geração do pai dela. Assim como eu, é uma mulher, seu corpinho que está desenvolvendo é de uma mulher que um dia terá seios, pelos na vagina, cintura, quadril talvez como o meu? se sentirá uma mulher ou não? A mim, não me importa a identidade que portará, mas sim, que o corpo dela seja exatamente o lugar onde ela queira estar, de modo confortável, leve, pronta para amar, se relacionar da melhor forma com o mundo e com ela mesma. Por ora, meu corpo é dela. O que como, penso, sinto, afeta como ela come, pensa e sente. O fluxo do cordão umbilical nos liga eternamente nesta cadeia contínua de alimento e afeto. Por fora, minha identidade centralizou na barriga. Ela é o centro de todas as atenções. Demorei entender e perceber isso até aceitar por completo. Os elogios, os cuidados são para ela: a barriga e o que ela guarda. Sinto que meu corpo não é mais meu e nem só dela, são dos outros todos que tem algo dizer sobre a minha gravidez. A barriga de fora - tão usada na adolescência como um símbolo da sexualidade desabrochada na época - comporta agora outro significado, o maternal.

Sou alvo de todos os conselhos, remédios e cuidados possíveis. Às vezes sinto minha intimidade invadida, mas quase que não me importo. As idas ao médico e exames permitem que meu corpo seja tocado, mexido, observado. As pessoas não se sentem constrangidas em olhar meus seios como se fossem duas mamadeiras, os seios não são mais os mesmos que cabiam num sutiã 42 há mais de 20 anos, são outros.

O pai dela já me depilou, pois - exceto pelo espelho - não vejo mais meus pelos pubianos. O quadril se expande num piscar de olhos, o fluxo de sangue aumentou sua produção, os hormônios expandem todas as sensações possíveis e quase não consigo dar conta. Não sei muito o que sinto. Só fecho os olhos e sinto. Choro às vezes, tenho sono, ansiedade, medo, alegria, me sinto ora cansada, ora acelerada. As roupas não são mais minhas, estão investidas de outros significados em outro corpo que não àquele que eu habitava até 7 meses atrás. Uma sensação de estranhamento me invade na mesma proporção em que meu eu se acomoda passivo nesta nova forma de ser e estar no mundo. Não consigo pensar em outro relato no dia da mulher senão esse.

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