Eu tinha uns 30 vestidos. Digo acho porque não se declara vestidos para o imposto de renda. Pelo menos 2 deles eu usava toda semana. Outros, 1x no mês, outros ainda 1x no ano. Eles estavam ali à minha disposição. Eu tinha botas que usava quase sempre, gosto de botas, inclusive no verão. Uma sandália de couro que comprei no Ceará, um all star vermelho, uma rasteirinha estampada que comprei da Priscila. Eu tinha colares, muitos, um vermelho pomposo que ganhei de uma amiga da Guiné Bissau. Eram colares de prata, de lata, de miçanga, de tecido, ganhados, comprados, trocados… adquiridos nas barraquinhas da universidade ou com os tailandeses do centro. Eu tinha sutiã de todas as cores para todas as ocasiões que combinavam com todas as blusinhas. Lenços de todos os tamanhos e cores.
Eu guardava na mala em cima do guarda-roupa as roupas de inverno quando era verão e as roupas de verão, quando era inverno. Na mala tinham casacos pesados de quando morei em Portugal. No cabide, casacos de couro, jeans, preto, azul marinho. Ao lado da mala, uma bolsa com uma fantasia de bruxa que usei outro dia. Edredons e cobertores com estampas que lembravam a infância, pois vieram de todas as casas que já morei desde que nasci.
Eu tinha cd´s. Uns 300 mais ou menos. Alguns eu ouvia diariamente: Debussy, Chopin, Secos e Molhados, Legião, Gal, Milton… outros como Rapha, Nirvana, Led, João Bosco e tantos outros, ouvia aleatoriamente. Gostava de dormir ouvindo música e olhando a lua que dava pra ver da minha janela.
Ao lado da cama tinha um criado mudo que fazia parte do jogo com a cama e o guarda-roupa que foram dos meus pais. No criado mudo tinha um caderninho que uma amiga me trouxe da Espanha onde escrevia meus sonhos quando perdia o sono. Ao lado da cama ostentava ainda um livro da Beauvoir, da Allende, do Stuart Hall, do Allan Kardec e Minutos da Sabedoria.
Em frente a cama uma estante de madeira maciça da antiga madeireira de Lages que era do meu tio e que presenteou meu pai. Nela devia ter uns 500 livros. Todas as minhas referências dos últimos 20 anos: antropologia, sociologia, política, filosofia, psicologia, envelhecimento, romances. Alguns usava frequentemente para preparar aulas, escrever artigos, produzir ementas. Outros, folheava vez ou outra, para lembrar algum conceito ou poema. Outro dia, passei o fim de semana organizando minha biblioteca por temáticas afins. Topofilia, o livro do geógrafo Yi Fu Tuan, O Pequeno Príncipe, Humberto Eco, Leviatã, Renato Ortiz, Durkheim, Marx, Weber, Roque Laraia, Gilberto Velho, Kapra, Milton Santos, Morin, Foucault, Descartes, Philippe Áries, muitos livros do Contestado, Biografia do Morrison, Dicionários, Livros de receita, livros que ganhei, livros para devolver, livros com artigos meus, álbum de fotografias.
Eu tinha agendas e caderninhos com anotações sobre eventos, congressos, aulas, planos… Uma mesa de computador com 2 baldinhos cheios de lápis, canetas, pincéis, grampos, borracha, trequinhos ganhados de alunos. Uma caixinha com as contas e parafernálias diversas. Um quadro africano pintado por uma aluna e um quadro com a foto dos meus avós e seus dois filhos: meu pai e meu tio. Em um outro compartimento, filmes sobre a Revolução Francesa, Joana D´arc, Memórias da Ilha… Atrás da porta tinham bolsas de todos os tamanhos para todas as ocasiões. É possível que dentro tivessem anotações,brincos, bilhetes, algum trocado. Na entrada da porta um altar com o crucifixo, Nossa Senhora de Fátima que comprei em Portugal, uma bíblia, um rosário que era do vô,… óculos de sol, meias, panfletos, pacotes, bonecas de pano, meu tamanco quando tinha 3 anos, roupas de bebê, muitas fotos. Um quadro que ganhei de um amigo de Cabo Verde, uma lembrança da Austrália.
Ecléa Bosi em o “Tempo vivo da Memória” diz:
Objetos são parte da essência de nossa identidade, se configuram como parte de nossa história pessoal, uma história que não é a oficial, dos manuais e datas importantes, mas outra história, a de cada um, construída ao longo da vida, tecida junto com seus objetos.
Em 3h, esses registros viraram cinzas. Fui chamada para a perícia do bombeiro que precisava saber qual o valor estimado da perda: “caro senhor, não consigo nesse momento avaliar”, foi o que eu disse para o moço que me interrogava.
No entanto, devo sempre lembrar que os objetos, apesar de investidos de representações cada um a seu modo particular, são afinal, somente objetos. O investimento dado a eles, a memória afetiva que cada um possuía foram atribuídos por mim. Assim sendo, posso investir novas representações e atribuições socioafetivas em todos os objetos que dali para frente entrariam em minha vida, novamente investidos de novas representações de solidariedade e amizade. Afinal, os objetos não são um fim em si mesmo, mas uma ponte, um dispositivo de acesso entre um ser humano e outro, um instrumento de saber, mas de que nada vale, se você não é um bípede, com telencéfalo desenvolvido, dedo polegar opositor e uma capacidade infinita de se adaptar às mudanças e reconfigurar novas identidades.
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