No final da consulta da minha filha, a pediatra disse:

Parabéns pela sanidade mental.

Essas palavras ecoaram profundamente dentro de mim. Talvez porque eu esperasse um “não se preocupe você é uma boa mãe” ou “continue mostrando a ela outros alimentos” ou um simples “volte daqui 1 mês pra acompanhar seu crescimento”. Mas não, ela se referia a minha saúde mental. E ela era pediatra e não psiquiatra. Isto me fez questionar se realmente eu tinha alguma sanidade e, principalmente, que o nosso mundo realmente não estava bem.

Era o ano de 2021. Mês de janeiro. Mês em que geralmente nos damos algum tipo de luxo de classe média em ascensão, para empreender alguma viagem paga a prestação no cartão de crédito ou simplesmente alguns dias na praia, vez ou outra um restaurante, barzinho aqui outro ali. Mas naquele ano não foi assim. Sequer foi possível enterrar o ano anterior e sentir a brisa do próximo, como um rito de passagem. O ano anterior permanecia ainda ali, preso às memórias, aos corpos, às vidas que ficaram e as que se foram, às instituições, às relações sociais. Ele agonizava, mas estava vivo. 2020 sobrevivia.

A hecatombe propiciada pela pandemia da Covid-19, superara a gripe espanhola e talvez se igualara à peste negra. Apesar do avanço da ciência e da tecnologia, não fomos capazes de prever tal catástrofe e o mundo parou.

Foi assim
No dia em que todas as pessoas do planeta inteiro
Resolveram que ninguém ia sair de casa
Como que se fosse combinado em todo o planeta
Naquele dia, ninguém saiu saiu de casa, ninguém

(Raul Seixas)

Pelo menos foi assim desde março de 2020, mês em que o vírus chegou em solo brasileiro. Escolas, creches, universidades, shoppings, comércio, academias, parques, viagens, shows tudo parou e foi cancelado. Eventualmente quando havia uma pressão de empresários e comerciantes, a vida ainda modesta e acanhada, voltava a ter alguma normalidade entre os mercadores e capitalistas de plantão, mas o afrouxamento logo se endurecia, quando aumentava as estatísticas de contaminados e de mortos.

A vida passou a girar em torno da pandemia: os noticiários revelavam a falta de consciência, empatia e respeito dos transeuntes e aglomerados nas cidades, amontoados em seus prazeres vazios, os números dos milhares de mortos desciam frios pela nossa garganta junto com a comida, as instituições públicas e privadas debatiam-se entre o equilíbrio econômico e a saúde pública, sem nunca chegar a um consenso. Os cientistas corriam contra o tempo em busca da cura e quando esta sinalizou alguns caminhos, tropeçou nos processos político-burocráticos de interesses diversos e obscuros.

E em janeiro de 2021, o Brasil estava atrás de 50 países que já haviam iniciado a vacina. Enquanto a vida pública se desenrolava num tremendo bacanal, a vida privada não era muito diferente. Os confinados - privilegiados, por excelência, já que não precisavam sair para trabalhar, como os profissionais da saúde - se debatiam em suas questões existenciais e de forçada convivência. Muitos perderam empregos, pessoas e dignidade. A violência doméstica ficou escancarada e o feminicídio disputava a morte com a COVID-19. A desordem e o caos alcançaram tamanha proporção que só “num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são”, como já nos dizia Saramago.

Paradoxalmente ao uso das máscaras para evitar o contágio, foi quando as máscaras morais caíram e a cegueira se tornou visível, deixando à mostra quem realmente as pessoas são. E elas podem ser muito ruins. As mulheres tomaram para si os chicotes da culpa e se tornaram alvo mais uma vez da covardia do patriarcado, assumiram de novo suas duplas, triplas jornadas, lançando mão de muitas conquistas históricas. Ocuparam-se, muitas vezes, em sobreviver e cuidar da prole e, ainda, muitas estavam vulneráveis à frente dos hospitais e postos de saúde. Sem creches e redes de apoio, muitas mães viram-se às voltas para continuarem sendo profissionais, esposas, amantes, mulheres, pessoas…

A depressão, a ansiedade, o luto, os traumas, a morte e todas as inscrições pandêmicas, permaneceriam nas vidas ainda por muito tempo para além do ano que acabou. O que acabou exatamente? A pediatra da minha filha me disse, que eu deveria ser uma das únicas dentre as outras mães, que apresentava alguns sinais de sanidade mental. E eu continuo me perguntando se isso é possível ou se os critérios de sanidade mudaram.

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